Tomo emprestado o título desta coluna do notável documentário de Marie-Monique Robin, como poderia também chamá-la O veneno está na mesa, em homenagem ao igualmente notável documentário de Silvio Tendler. Como o leitor já concluiu, são filmes sobre agrotóxicos no Brasil.
Tomei conhecimento desses documentários via redes sociais e discretas notas na imprensa. Vendo-os, descobri estarrecido que somos, desde 2008, o país que mais consome agrotóxicos no mundo. Uau, pensei! Então devemos mesmo ser os campeões na produção de alimentos.
Em rápida consulta ao site da FAO, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, descobri: em 2008, a produção sul-americana de grãos foi de 136 milhões de toneladas. De fato, dá para fazer muita papinha. Mas a norte-americana, no mesmo período, foi de 453 milhões de toneladas; a europeia, 478 milhões; e a asiática, 945 milhões.
Não lhes parece desproporcional estar no pódio do consumo de agrotóxicos para uma fatia relativamente pequena da produção global? É estranho. Também achei notável que um fato tão relevante como esse – de passar ao topo da lista – tenha tido tão pouco destaque na imprensa.
E mais extraordinário ainda a solitária nota na coluna ‘Eco Verde’, do jornal O Globo, em 11 de agosto de 2011, sobre a reunião daComissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) em que se decidiria a respeito da liberação ou não do uso comercial no país do primeiro feijão geneticamente modificado do mundo, desenvolvido pela Embrapa.
Pois bem, depois de algumas divergências na CTNBio, o feijão transgênico foi aprovado nessa quinta-feira, 15 de setembro. Veremos como a imprensa vai reagir. Hoje (16/9) o tema foi destaque da seção de ciência do mesmo jornal mencionado.
Patenteando a vida
Não por acaso tem sido algo acidentada a aprovação de versões transgênicas, ou geneticamente modificadas – que soa menos ‘Frankensteinico’ –, de plantas de maior carisma e simbolismo por sua importância crucial na alimentação humana. O trigo na Europa, o milho no México, o arroz na Ásia...
Cada região tem sua versão do pão nosso de cada dia – o feijão-com-arroz, no nosso caso –, impregnado na sua história, religião, lendas e, sempre que possível, em seus pratos. Cada uma dessas plantas tem dezenas ou centenas de apetitosas variedades, obtidas pelo conjunto da humanidade ao longo dos últimos 10 mil anos graças à exaustiva seleção e cruzamento das raquíticas versões selvagens originais.
Até que um dia, as mesmas indústrias químicas que haviam desenvolvido desfolhantes para uso militar se aliaram a empresas de biotecnologia para desenvolver versões geneticamente modificadas de plantas que as tornassem resistentes a herbicidas específicos. Naturalmente, os herbicidas eram fabricados pelas mesmas empresas.
A Monsanto, por exemplo, desenvolveu a soja RR (Roundup Ready), resistente ao glifosato, no mesmo momento em que a patente de seu herbicida Roundup (cujo principal ingrediente é o glifosato) vencia. Com o aumento da demanda pelo herbicida, não deixaria de lucrar tanto quando outras empresas passassem a produzi-lo.
Ninguém estranha que um herbicida seja patenteado. Mas patentear seres vivos? Sim, atualmente isto é legal em muitos países. Tudo começou em 1980, nos Estados Unidos, com uma bactéria, seguida por uma planta em 1985 e um animal em 1990. Hoje as sementes geneticamente modificadas e os herbicidas a que são resistentes são ambos patenteados e vendidos no mesmo pacote.
No Brasil, a lei permite patentes de microrganismos geneticamente modificados e proteção intelectual de cultivares de plantas, mesmo que não sejam geneticamente modificadas. As plantas e os animais – o todo ou partes –, bem como as sequências de DNA de qualquer espécie de ser vivo, não são objeto de patentes.
Lobby musculoso
Rápido retorno ao site da CTNBio. Lá encontro a liberação para o uso comercial de nove variedades de algodão, 17 de milho e cinco de soja, todas geneticamente modificadas para resistir a insetos e herbicidas – e patenteadas. Elas garantem a segunda posição brasileira na lista de maiores produtores de transgênicos do mundo. A promessa dessas plantas com código de barra é garantir maior produção com menor aplicação de agrotóxicos.
Por isso continuo não entendendo por que estamos no pódio mundial do uso desse tipo de produto. E por que o nosso uso de agrotóxicos cresce mais rápido que nossa produção de alimentos, transgênicos ou não.
Bem, na verdade, há umas coisinhas que ajudam bastante, como isenções fiscais – parciais ou totais – sobre agrotóxicos, em âmbito federal e/ou estadual; condicionamento de crédito bancário à comprovação de aquisição do pacote agronômico completo; assédio judicial sobre os órgãos reguladores como a Anvisa por parte tanto das empresas como de órgãos do próprio governo – como os ministérios da Agricultura e da Ciência, Tecnologia e Inovação.
Tem mais. O Brasil usa diversos agrotóxicos importados cujo uso já foi proibido em países como Estados Unidos, China, Comunidade Europeia e diversas nações africanas. Nesses lugares, com frequência se proíbe o uso, mas não a fabricação. Alguns simplesmente transferem a fábrica para algum país mais flexível. Afinal, manter um mercado consumidor para esses produtos, em algum outro lugar, lhes dá uma sobrevida, amortizando mais um pouco o investimento inicial até cessar de vez a produção. Nada que um lobby musculoso não resolva.
Não há dúvida de que a invenção do kitagronômico patenteado foi uma grande jogada comercial. Mas o predomínio de poucas variedades patenteadas em grandes monoculturas promove o gradual desaparecimento das variedades que se plantavam antes da introdução do kit.
Isso deixa os agricultores sem plano B caso a produção diminua, por conta do aumento da resistência das plantas invasoras ao herbicida, e os custos aumentem, devido à necessidade de aplicação mais frequente do produto. Detalhe perverso: os contratos preveem a proibição de reservar parte da safra para replantio, uma prática milenar. Pensaram em tudo.
E ainda chamam isso de nova revolução verde? De fato, certas cédulas têm essa cor.
Com informações: Instituto Ciência Hoje
Por: Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro