De acordo com Ítalo Calvino, um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer. A partir desse aforismo, o presente texto justifica-se por dar continuidade e sentido ao olhar crítico do Magnum opus, O médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson em nossa geração. Além disso, o presente texto tem a intenção de analisar e compreender uma das problematizações proposta pela obra, O mal-estar na civilização, e suas implicações sob a panorâmica da Psicanálise.
O mal-estar na civilização
“Não nos sentimos nada á vontade em nossa civilização atual” (Freud- O mal-estar na Civilização p. 36 [276])
O “casamento” entre o clássico “O médico e o monstro” e a Psicanálise não se constitui apenas em uma visão fascinante do comportamento humano, mas conduz o leitor também a uma reavaliação da nossa vivência na civilização, um matrimonio perfeito entre a relação dialética homem-sociedade.
Se a civilização é assim ameaçada pela agressividade e pelos comportamentos destrutivos e monstruosos de nosso Hyde particular, quais são os meios de que dispõe a civilização para inibi-lo? Trata-se de uma formação psíquica que Freud denominou de “superego” — Representado na obra literária por Dr. Jekyll — construída a partir das internalizações de padrões de moralidade e ética adquiridos pela adesão da civilização em nossas vidas.
Para Freud, o id — Representado na obra literária por Mr. Hyde — direciona o indivíduo na busca de pensamentos e comportamentos prazerosos, porém encontra o seu maior e mais poderoso empecilho na civilização. Segundo ele, a civilização exige o sacrifício e a renúncia aos impulsos instintivos, e a partir dessa “renuncia” cultural se evidencia o que Freud chama de “mal-estar na civilização”.
Portanto, a impossibilidade da civilização tornar o homem feliz está ligada á natureza humana, pois ela exige a necessidade do sacrifício de uma parte da liberdade individual em prol do bem público.
Na esfera Jurídica, a soma de todas essas pequenas parcelas de liberdade constitui o direito de punir, ou seja, o princípio básico do Direito Penal em nossa sociedade. No âmbito psíquico, as implicações desse "contrato" social é o sentimento de culpa que a todo momento tenta frear nosso princípio do prazer
Na obra literária presenciamos como a civilização fracassa em proporcionar a felicidade que se espera dela no momento em que Dr. Jekyll diz: " Sim, preferi ser o médico, embora mais velho, embora desgostoso, mas rodeados de amigos e acalentando honestas esperanças; disse adeus á liberdade, á relativa mocidade, aos pés ágeis, coração leve e prazeres clandestinos que gozara sob o disfarce de Hyde".
Nesta obra, Robert Louis Stevenson não apenas coloca a problemática da dicotomia da personalidade humana, mas também a dificuldade de se tornar feliz habitando em uma civilização em que a renúncia dos instintos e desejos são exigências para o estabelecimento da ordem social. Além disso, reexamina considerações a respeito do sentimento de culpa e da liberdade humana.
Glossário de termos básicos:
Superego: Juntamente com o Ego e o Id, o Superego forma, segundo a teoria psicanalítica, a estrutura do aparelho psíquico humano e é a porção moral da mente humana que representa os valores construídos na vida em sociedade.
Id: O id é a fonte da energia psíquica. É uma estrutura formada por instintos, impulsos orgânicos,desejos inconscientes e representa o que há de mais primitivo em nós. Além disso, tem como característica fundamental o princípio do prazer: buscar sempre o que produz prazer e evita o que é aversivo.
Ego: É a instancia psíquica que é regida pelo princípio da realidade, que introduz a razão, o planejamento e a espera no comportamento humano como meio de manter o equilíbrio entre as reivindicações do id e a censura exercida pelo superego.