21 anos do ECA e o compromisso social da Psicologia


O século XX ficou marcado por inegáveis avanços na construção dos direitos da criança e do adolescente, sendo considerados documentos fundamentais nesta construção: a Declaração dos Direitos da Criança de 1924, que inaugura o discurso da proteção especial a crianças e adolescentes; a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948; a Declaração Universal dos Direitos da Criança, de 1959 e Convenção Internacional dos Direitos da Criança, de 1989.


Acompanhando essa construção histórica e como conseqüência do processo de redemocratização do estado brasileiro e da luta de movimentos sociais, a garantia dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil está materializada, no plano legal, na Constituição Federal (CF) de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), Lei Federal nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. O ECA, em seu artigo 1º, dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente e detalha, em mais de 260 artigos, a devida proteção à criança e ao adolescente, nos mais variados aspectos de sua vida em sociedade. Essas mudanças rompem com o parâmetro doutrinário vigente no Brasil até então denominado Doutrina da Situação Irregular (que considerava crianças e adolescentes em situação “irregular” – abandonados, carentes, infratores – como “menores”, no sentido de menos valia e como objetos subjugados ao poder dos adultos, sendo tratados com práticas tutelares, autoritárias e centralizadoras) e consolida os princípios da chamada Doutrina da Proteção Integral (que passa a considerar todas as crianças sujeitos de direitos e cidadãos que devem ter protegidos os seus direitos ao desenvolvimento saudável).


A partir da ruptura com a concepção da situação irregular, uma nova ordem se instala, na qual o foco é na defesa e proteção dos direitos e no entendimento de que não são crianças e adolescentes seres “irregulares”, mas são irregulares sim as situações de violação dos seus direitos colocadas pelos adultos e pelas instituições da sociedade na qual estão inseridas.


Observa-se que a trajetória de construção dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil aponta para inegáveis avanços no plano legal e, neste sentido, a promulgação do ECA configura-se como um divisor de águas. As mudanças na legislação impactaram não apenas no campo jurídico, mas em todas as áreas das políticas públicas e sociais.

Entretanto, mesmo com essas constatações, preocupa-nos ainda a má interpretação do ECA por grande parte da sociedade brasileira, criando aí um hiato entre o que está preconizado na lei e o que está efetivamente ocorrendo nas práticas de atenção a crianças e adolescentes em todos os campos. A concepção de vigilância e controle de uma infância e adolescência “irregulares” (especialmente os segmentos mais pobres) e os modelos de intervenção identificados como correcionais-repressivos e assistencialistas são ainda praticados em nossa sociedade. Da mesma forma, práticas funcionalistas, estigmatizantes, criminalizadoras e patologizantes têm servido a uma sociedade que cada vez mais desumaniza suas relações, individualiza e os sujeitos e desconsidera a responsabilidade de todos na sua construção.


Neste contexto, pautados no compromisso social da psicologia brasileira, ao comemorarmos 21 anos do ECA, convocamos toda a sociedade e em especial as psicólogas e psicólogos a refletirem sobre os modos de pensar e as suas práticas que envolvem crianças e adolescentes. Temos subsídios científicos, éticos e políticos para atuarmos profissionalmente na direção da promoção, defesa e controle dos direitos humanos de crianças e adolescentes e temos o dever ético de colocá-los à disposição da sociedade.

Sandra Maria Francisco de Amorim
Conselho Federal de Psicologia